Como eu havia mencionado anteriormente, erros judiciais sempre me chamam a atenção. Sobretudo aqueles que envolvem privação de liberdade de pessoas inocentes. Menos mal que o sistema penal brasileiro não permite a pena de morte, se analisado sob essa perspectiva, porque, caso contrário, sempre me daria frio na espinha a cada condenação.
Pois bem, revendo alguns casos em que trabalhei, a maioria dos quais tratavam de prisões provisórias, isto é, ainda sem sentença penal condenatória, lembrei-me de uma história relatada por um colega de trabalho, à época, Dalariva. Trata-se da triste sina dos irmãos Sebastião José Naves e Joaquim Rosa Naves, que foram presos e torturados até confessarem um crime que não cometeram.
Tal história ocorreu na cidade de Araguari, no interior de Minas Gerais, em 1937. Os irmãos Naves eram sócios de seu primo Benedito Pereira Caetano, todos comerciantes de cereais, e, juntos, resolveram comprar um caminhão. Em meio à crise econômica, Benedito resolve fugir da cidade levando consigo uma grande quantia em dinheiro, resultado da venda de uma safra de arroz. Ao perceberem a situação, os irmãos comunicam o fato à polícia, que inicia as investigações.
Quando o tenente militar Francisco Vieira dos Santos, o “Seu Chico Vieira”, passa a ser o responsável pelo caso, rapidamente formulou a hipótese de que os irmãos teriam assassinado Benedito, com o objetivo de ficarem com o dinheiro e saldarem suas dívidas. Assim, manda prendê-los para interrogá-los e verificar as suas motivações para o crime. Eles eram alojados em celas subterrâneas em péssimo estado de conservação, privados de água, comida, visitas e até mesmo de luz do sol. Além disso, eram constantemente torturados, ameaçados de morte, com o objetivo de terem suas forças físicas e morais esgotadas, para que fizessem uma “confissão” formal do crime.
O depoimento, conseguido à base de torturas, está transcrito a seguir:
“Que no dia vinte e nove de novembro do ano passado às duas horas da madrugada mais ou menos, estava em companhia de seu irmão Sebastião José Naves em sua casa, esperando a chegada de Benedito Pereira Caetano a fim de convidá-lo para um passeio a Uberlândia; que poucos momentos depois, chegava Benedito Pereira Caetano, na casa do declarante, sendo então convidado pelo declarante e o seu irmão Sebastião, para o dito passeio a Uberlândia; que Benedito Pereira aceitou o convite para o passeio referido, entrando no mesmo momento todos os três para dentro do caminhão, pondo-o em marcha, tomando a direção da ponte do Pau Furado, isto às três horas da madrugada; que, depois de atravessarem a referida ponte, isto pelas quatro horas da madrugada, mais ou menos, apearam do dito caminhão, o declarante, seu irmão Sebastião e Benedito, com o fim de tomarem água; que desceram o paredão até a margem do rio, estando seu irmão na frente, Benedito no centro e o declarante atrás, o qual levava oculta uma corda de bacalhau de um metro e tanto; que chegados na beira do rio, Sebastião agarrou Benedito pelas costas e o declarante fez um nó na dita corda, introduzindo-a pela cabeça de Benedito até o pescoço, apertando-a logo em seguida, e Sebastião em um movimento brusco largou os braços de Benedito auxiliando o declarante a apertar a corda; que, Benedito nesse momento desfaleceu, caindo de joelhos, até ficar sem vida, e que foi verificado pelo declarante e seu irmão Sebastião; que este logo em seguida procedeu a uma busca em Benedito, sacando da cintura deste um pano que o mesmo trazia amarrado à cintura, por dentro da cueca e onde o declarante e o seu irmão sabiam que existia a importância mais ou menos de noventa contos de réis em dinheiro, cuja importância o seu irmão Sebastião depositou em uma latinha de soda adrede preparada pelo declarante para esse mesmo fim que transportou-a de sua casa; que em seguida seu irmão Sebastião pegou o cadáver de Benedito pela cabeça e o declarante pelos pés, atirando-o na cachoeira do Rio das Velhas, do lado de baixo da ponte; tendo deixado na beira do dito rio a corda com que se utilizaram para a execução do crime e o pano onde continha o dinheiro que a vítima conduzia; que, em seguida tomaram o caminhão de volta para esta cidade; que, em certa altura, nas proximidades da fazenda de Olímpio de Tal, o declarante que guiava o caminhão, fez uma parada por ordem de seu irmão Sebastião; que conduzia o dinheiro, deixando em seguida o caminhão na estrada entrando para o mato, beirando uma cerca de arame, numa distância de uns quinhentos metros ou talvez um quilômetro, pararam ambos em uma moita de capim gordura onde Sebastião começou a cavar um buraco com as unhas, sempre de posse da lata onde se continha o dinheiro e, auxiliado pelo declarante que ainda ajudou a acabar de furar o dito buraco, onde enterraram a lata que continha o dinheiro. Diz o declarante que fizeram de balisa duas árvores das proximidades a fim de que em ocasião oportuna fossem retirar o fruto do saque.”
Além das torturas pessoais, “Chico Vieira” ordenou que prendessem as suas esposas, Antônia Rita (mulher de Joaquim) e Salvina (esposa de Sebastião), seus filhos e até mesmo a sua mãe, Ana Rosa Naves, conhecida como “Don’Ana”. Todos foram torturados para que se conseguissem depoimentos que corroborassem com a teoria inicialmente criada.
Depois de colocada em liberdade, “Don’Ana” procura o advogado João Alamy Filho, que inicialmente se recusava a exercer a defesa dos irmãos Naves por acreditar na tese do tenente. Porém, ao ver a situação lamentável daquela senhora que o procurava, resultado das torturas sofridas, ele se convence e passa a ser defensor dos irmãos.
O julgamento, ocorrido em 1938, foi repleto de testemunhos recitados mecanicamente, por aqueles ainda traumatizados pela dor e pelo sofrimento das torturas, inclusive dos próprios irmãos Joaquim e Sebastião, que confirmaram o crime. Porém, ainda assim, Salvina e “Don’Ana” falaram a verdade, inclusive denunciando as atrocidades ocorridas.
Trechos da sentença de pronúncia: “O crime de que se ocupa este processo é da espécie daqueles que exigem do julgador inteligência aguda… pois, no Juízo Penal, onde estão em perigo a honra e a liberdade alheias, deve o julgador preocupar-se com a possibilidade tremenda de um erro judiciário… É certo que não há notícia do paradeiro da vultosa soma… Infrma o patrono dos acusados que tais confissões são produto de maus tratos e desumanidade… Compulsadas as páginas do processo com a maior cautela, não se divisa, porém, a prova de extorsão das declarações dos inculpados… As informações de Antônia Rita são impressionantes, pois desvendam a conversa íntima havida entre marido e mulher, revelam o bárbaro crime nos mínimos detalhes… E não se diga que tais declarações foram extorquidas pela Justiça… A confissão do réu prestada na polícia constitui meia prova, como adverte Edgar Costa… até mesmo a confissão alcançada por meio de torturas, uma vez que coincida com as demais circunstâncias do crime… Se de um lado se levanta a acusação forrada de monstruosidades, do outro se ergue a voz da justiça, imparcial e humana, por isso mesmo sujeita às contigências da fatalidade… Julgo procedente a denúncia para pronunciar, como pronuncio, os indivíduos Joaquim Naves Rosa e Sebstião José Naves”.
A sentença ao julgamento ocorrido em 27 de junho de 1938, absolveu os dois réus, por seis votos a um, nos seguintes termos: “Em conformidade com as decisões do Conselho de Sentença, tomadas por maioria absoluta de votos, julgando improcedentes a acusão levantada pela Justiça Pública contra os réus Sebastião José Naves e Joaquim Naves Rosa, eu os absolvo e mando que transitado em julgado a decisão, se dê baixa dos seus nomes no rol dos culpados e sejam postos em liberdade. Custas pelos cofres do Estado…”
A Promotoria, no entanto, apela e anula o processo por falta de votação dos quesitos de co-autoria. Em 21 de março de 1939, mais uma vez, os irmãos são absolvidos por seis votos a um, tendo o Ministério Público novamente apelado da decisão. Finalmente, em 4 de julho de 1939, Joaquim e Sebastião são condenados a 25 anos e 6 meses de reclusão pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
Posteriormente, em revisão criminal ocorrida em 1940, a pena foi reduzida a 16 anos. Após 8 anos de cárcere, é concedida aos irmãos liberdade condicional, em 1946. Joaquim morreu dois anos após conseguir sua liberdade.
Em 1952, Sebastião encontrou Benedito vivo, na fazenda de seu pai, para onde havia voltado 15 anos após o início dos fatos. Conseguiu, com Alamy, finalmente, após várias batalhas judiciais, indenização pelo chamado “tremendo erro judiciário de Araguari”.
Fontes:
O caso dos Irmãos Naves, de Luis Sérgio Person e Jean Claude Bernardet, Fundação Padre Anchieta, Imprensa Oficial de São Paulo, São Paulo, 2004.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Irmãos_Naves
http://www.araguariturismo.hpg.ig.com.br/casonaves.htm
http://www.dhnet.org.br/direitos/penamorte/dalmodallari.html
http://www.terra.com.br/curiosidades/fatos/fatos_05.htm
http://linhadireta.globo.com/justica/justica_envolvidos.jsp
http://linhadireta.globo.com/justica/justica_home.jsp?cd_caso=1971
Post escrito na vigência da Bolsa de Estágio de Doutorado – Balcão concedido pela CAPES, desenvolvido na Pennsylvania State University, em State College, PA, Estados Unidos.