Muito me chamou a atenção a recente circulação de uma notícia relativamente antiga (outubro de 2014), publicada pela Folha Política, nas redes sociais, que trata da proposição de transferência de custos de manutenção da prisão para o preso, feita pela Vereadora Carla Pimentel (PSC), de Curitiba. Segundo a matéria, a parlamentar teria argumentado sobre a existência de uma “inversão de prioridades” no que tange aos investimentos em educação e aos recursos repassados para o sistema prisional, quando um apenado gera um custo de aproximadamente R$40 mil ao ano, enquanto um estudante universitário, no mesmo período, gastaria em média de R$15 mil.
No texto de sua proposta, protocolada no Sistema de Proposições Legislativas sob o código 043.–243.2014, a sugestão de alteração no texto da Lei de Execução Penal (Lei n. 7210/84) seria a transcrita a seguir in verbis:
“Requer que seja encaminhado à Comissão Especial de Reforma da Lei de Execução Penal e à Presidência da República, sugestão na análise de:
Alteração do Art 29, § 1°, alínea “d” da LEP:
d) Ressarcir ao Estado as despesas realizadas com a manutenção do condenado, sendo o mesmo responsável pelo seu custo;
Alteração inciso VIII no capítulo IV, seção I dos Deveres:
VII indenização ao Estado, das despesas realizadas com a sua manutenção, mediante desconto da remuneração de seu trabalho;”
Evidentemente, o texto parece de uma lucidez louvável, ainda mais quando se dá a devida atenção à justificativa dada à propositura, em que se destaca que o Estado deve garantir ao preso condições de trabalho para que possa usufruir do benefício da remição da pena (na proporção de 1 dia de pena para cada 3 dias trabalhados).
Há quem afirme que o trabalho é a melhor forma de ocupar o tempo ocioso, outros o vêem como meio de sobrevivência, que exprime e realiza, por si mesmo, a dignidade do homem.
O trabalho prisional, especificamente, é visto como meio de reduzir os efeitos criminógenos da prisão, em virtude da ocupação dada ao tempo do apenado.
Ora, é a Lei de Execução Penal, em seu art. 28, que estabelece o trabalho do condenado como dever social e condição de dignidade humana que terá finalidade educativa e produtiva.
Há quem entenda, ainda, que a vontade do legislador pátrio não foi tão somente estimular o trabalho do preso, ou conscientizá-lo de sua importância, mas pretendeu obrigar o homem que está preso definitivamente, a trabalhar.
Razão existe no pensamento de Alfredo Issa Ássaly, citado por Renato Marcão , que entende que “o trabalho presidiário, consagrado em todas as legislações hodiernas, constitui uma das pedras fundamentais dos sistemas penitenciários vigentes e um dos elementos básicos da política criminal”.
Ocorre que algumas confusões surgem quando se discute a questão do trabalho do preso. Isto porquê a legislação penal prevê que o trabalho do condenado é obrigatório, sendo, inclusive, considerado um dever social, conforme o supramencionado artigo. Em contraposição, a Constituição de 1988, em seu artigo 5º. XLVII, “c”, veda a imposição de pena de trabalhos forçados.
Em virtude disto, alguns questionamentos são feitos: ao se determinar que o preso que se recusa a realizar trabalho seja privado de benefícios legais, não se está, indiretamente, forçando-o a trabalhar? Impor uma sanção contra a sua inércia, não seria impô-lo um trabalho forçado? O dispositivo da obrigatoriedade não diz respeito ao trabalho forçado?
Diante da interpretação do dispositivo infraconstitucional à luz da Carta Magna, que determina que não haverá pena de trabalhos forçados, há uma tendência de entender a Lei de Execução Penal como inconstitucional.
Como nos ensina Cezar Roberto Bitencourt , a despeito do trabalho ser obrigatório, hoje, ele é um direito-dever do apenado e será sempre remunerado, consoante intelecção do art. 29 da LEP.
Ademais, a nossa legislação permite a remição de um dia de pena para cada três dias trabalhados pelo preso. O art. 126, § 1º da Lei de Execução Penal, estabelece que “o condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semi-aberto poderá remir, pelo trabalho, parte do tempo da execução da pena”.
Assim sendo, diferente do que se pensa, apesar do trabalho ser obrigatório, ele não é forçado, já que o apenado pode optar por não trabalhar, se esta for a sua vontade. Ora, as conseqüências disto é que o preso não terá sua pena remida pelo trabalho, porém não sofrerá qualquer penalidade.
Destarte, é obrigatório fornecer ao apenado condições de trabalho, a fim de que ele possa remir parte da sua pena. Ora, ao Estado incumbe o dever de dar trabalho ao condenado em cumprimento de pena de liberdade, ou àquele a quem se impôs medida de segurança definitiva. É direito do preso a atribuição de trabalho e sua remuneração, consoante art. art. 41, II, da LEP. Todavia, sob nenhuma hipótese, ele é forçado a trabalhar contra a sua vontade.
Isto posto, percebe-se que o dispositivo da Lei de Execuções Penais está em sintonia com a Lei Maior. Ora, como bem explica Luíz Flávio Borges D’Urso, a vedação ao trabalho forçado existe no nosso ordenamento, enquanto pena, motivo pelo qual não se pode admitir que o indivíduo seja apenado com a privação de liberdade e com a obrigatoriedade do trabalho, já que seria proporcionar um excesso de pena – “bis in idem” – expressamente vedado pela Constituição Federal.
Levando em consideração que a obrigatoriedade do trabalho ao preso corresponde à uma premiação para aquele que trabalhou, resta claro que a legislação infraconstitucional não entra em choque com a Carta Magna, sendo assim, a medida caberia como incentivo de comportamento, obrigando o criminoso a assumir o alto custo de seus “atos”, o tornando co-responsável por sua manutenção, diminuindo custo para o país.
Em sua argumentação, Pimentel afirma que o preso deveria indenizar o Estado “das despesas realizadas com a sua manutenção, mediante desconto da remuneração de seu trabalho”, citando como exemplos bem sucedidos a Alemanha e a Dinamarca. No entanto, apesar da “beleza” do discurso, parece haver uma falácia implícita, que passa despercebida aos olhos daqueles que não são tão familiarizados com o sistema carcerário brasileiro. Ao que me parece, a própria justificativa se mostra incoerente, afirmando, inicialmente, a vedação constitucional do trabalho forçado, por configurar bis in idem – além de poder ser considerado escravidão, o que, conforme os livros de história, foi abolida no país há séculos -, e, posteriormente colocar o ora proposto dever do preso de ressarcimento ao Estado dos custos de sua manutenção como medida capaz de “obrigar” o criminoso a assumir a responsabilidade de seus atos. Não seria impossível garantir que o trabalho permanecesse “facultativo”, incentivado apenas pela possibilidade de remição da pena, mas ainda assim “forçar” o pagamento dos custos do encarceramento (por meio de labor), como penalidade pelo ócio???
Além disso, a ironia que se oculta nas belas palavras é que os postos de trabalho em estabelecimentos penais são extremamente limitados, não alcançando a totalidade dos presos – o que quer dizer que, ainda que todos quisessem trabalhar, não haveria como acomodar a demanda. Adicionalmente, apesar de se mencionar – ao menos academicamente – o pecúlio (depositado em caderneta de poupança para ser entregue ao preso quando colocado em liberdade), sabe-se que o trabalho dos encarcerados não se rege pela Consolidação das Leis do Trabalho (não possuindo direitos como décimo terceiro salário, férias), sendo a remuneração extremamente reduzida (devendo seguir tabela específica, não podendo ser inferior a três quartos de salário mínimo).
Pouco se sabe que não raras são as penas que, além do tempo de encarceramento, aplicam multas. Além disso, muitos dos presos também respondem civilmente pelos crimes, devendo ressarcir as vítimas financeiramente, de modo a minimizar os danos por eles causados. Assim, somando somente essas circunstâncias, já não parece viável a aplicação do ressarcimento dos custos da manutenção da prisão aos próprios presos por meio de “descontos na remuneração”.
Evidentemente, não estou dizendo que se deva “desistir da ideia” por falta de possibilidades. Ao contrário, ainda acredito que a saída seja minimizar o ócio, aumentando a produtividade dentro dos estabelecimentos penais, de forma a permitir, de fato, alguma mudança na atual conjectura do sistema prisional. Acredito que a saída estaria sim no incentivo ao labor, no sentido de aumentar postos de trabalho, sem que necessariamente se associassem a ele números ou valores quantificáveis na aparentemente impossível proporção de remuneração por ressarcimento de custos. Ao contrário, que algumas obrigações do Estado para com cidadãos comuns -como a manutenção de vias públicas (operações tapa-buraco, por exemplo), pintura de faixas de rolamento e de pedestres, reformas de escolas e hospitais públicos, reparos em equipamentos urbanos, jardinagem, entre outros – pudessem ser desempenhadas por pessoas presas. Assim, acredito que a mão-de-obra poderia estar sendo mais bem utilizada em prol da sociedade, fazendo com que “o cidadão de bem deixe de ser vítima do sistema”.
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