Em artigo publicado ontem, dia 15 de julho de 2015, pelo site terra.com.br, foram demonstradas as condições precárias em que detentas sobrevivem no sistema prisional brasileiro. Mostrando as dificuldades encontradas nas tentativas frustradas de se mapear a população carcerárea feminina no Brasil, como relatado na matéria, é como “mergulhar em um buraco negro de desinformação”. Os dados são precários, sendo que informações simples são negligenciadas por aqueles que deveriam ser responsáveis pelo cuidado e atenção sobre a sua custódia.
Em seguida, o assunto tratado é o livro escrito pela jornalista Nana Queiroz, Presos que menstruam, pela Editora Record, 2015, que é o resultado de uma análise do sistema carcerário ao longo de quatro anos, monstrando as especificidades de gênero que são ignoradas. Alguns exemplos são a necessidade de absorventes, papel higiênico, a possibilidade de gravidez, os cuidados da amamentação e a presença de bebês, o tratamento dado às famílias, sobretudo às crianças, entre outros.
Neste sentido, abro em primeira mão o meu projeto de pesquisa de pós doutorado realizado justamente neste tema, com o título “Arquitetura prisional e a realidade feminina”, cujo escopo é justamente desvendar as especificidades de gênero do universo feminino no sistema penal-penitenciário.
Segue abaixo o projeto, que está sendo desenvolvido sob orientação do Professor Doutor Flávio René Kothe, da Universidade de Brasília:
1. CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA
“A prisão fabrica delinquentes”. “O sistema penitenciário é a melhor escola do crime”. “Bandido bom é bandido morto”. “Redução da maioridade penal é a solução para acabar com a delinquência juvenil”. Estes e outros muitos clichês são massivamente multiplicados em conversas casuais, redes sociais, programas políticos, novelas, programas televisivos e filmes, de modo que, cada vez mais, tornam-se lugar comum. Acabam enraizando-se como cláusulas pétreas, imutáveis ao longo do tempo e do espaço, fazendo com que a humanidade acredite que não há solução para os problemas sociais, que culminam no crime e na sua consequente punição, chegando a um problema epistemológico fundamental semelhante ao do ovo e da galinha. Para não se manter tão enigmático o questionamento, esclareçamos: o que deveria ser endereçado com maior prioridade? Os problemas sociais de dentro ou de fora das prisões, considerando que são essencialmente os mesmos?
Falta de investimentos na educação, na saúde e na segurança público, racismo, diferenças entre gêneros, discriminação são problemas sociais com notória gravidade. Tamanha é a seriedade dada aos estudos desses assuntos que campos acadêmicos inteiros são destinados a eles, como as ciências políticas, a economia, a sociologia, a antropologia, entre outros e suas vertentes e ramificações derivadas. Evidentemente, as consequências práticas de todos esses inconvenientes acabam se revelando em forma de criminalidade e precisam ser novamente levadas para onde não possam ser mais vistas. Assim, pode-se dizer que o sistema penal-penitenciário traz em si, portanto, características sintomáticas da sociedade livre. Trata-se de um movimento cíclico em que problemas aparentes em um dos lados passam a se tornar inconvenientes, precisando ser controlados, sendo empurrados, portanto, para o outro, deixando outros subjacentes intocados.
Assim, é possível dizer seguramente que os níveis de corruptividade, as falhas, a vontade de acertar e de corrigir refletem o que se passa além dos muros das prisões. Em recente pesquisa, realizada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), e pela Secretaria Nacional da Juventude ((SNJ), divulgada em junho de 2015, concluiu-se que 18,7% dos presos brasileiros sequer deveriam estar atrás das grades. Isso porque, segundo o perfil analisado, deveriam ter tido atribuídos a eles penas alternativas . E exatamente por esta razão, pela não observância de possibilidades de aplicação de medidas que não as restritivas de liberdade, existe uma sobrecarga nos estabelecimentos penais e, consequentemente um déficit de vagas impossível de ser resolvido. Além disso, gera um fascínio – para não dizer obsessão ‒ na “arte” de fazer uma boa arquitetura prisional, que tenta a todo custo buscar uma forma perfeita de se construir edificações voltadas para o cárcere institucionalizado, no sentido de se tentar a todo custo evitar fugas, deixando outras prioridades em segundo plano.
Apesar de se reconhecer que existem parcelas de equívocos em cada etapa da persecução penal, desde a sua definição, o que culmina numa avalanche de problemas, não se pode negar que o ambiente, em última instância, é capaz de gerar ou inibir interações de maneira tal que podem transformar personalidades. No caso do espaço prisional, como se pode perceber, tal transformação, via de regra, é extremamente negativa. Assim, a análise da arquitetura prisional acaba por se tornar algo fascinante, seja por tentar compreender o porquê do resultado tão degradante observado nas pessoas que permanecem dentro desses espaços por longo período, seja por tentar reverter os efeitos, fazendo com que eles sejam mais positivos.
O sistema prisional brasileiro, assim como em grande parte do mundo, sofre consequências bastante problemáticas em decorrência de “soluções arquitetônicas” tomadas, sem que a devida atenção seja dada no momento da concepção dos primeiros traços do estabelecimento que virá a “abrigar” pessoas que terão sua liberdade privada por longos períodos de tempo. Neste momento, já se devem esclarecer as contradições encontradas nos termos utilizados, uma vez que não necessariamente se tratam de “soluções”, já que as decisões tomadas muitas vezes mais causam problemas do que resolvem, e “abrigo” não seria o vocábulo mais adequado, já que por vezes o que se vê são “depósitos de corpos”, piores do que aqueles em que se expõem animais enjaulados em zoológicos.
A análise de como funciona o espaço dentro das prisões e a influência do ambiente sobre seu usuário – e vice-versa – é área de interesse não só da arquitetura, mas também da psicologia ambiental e social, tendo sido tema recorrente em diversas pesquisas ao longo dos últimos anos. No entanto, uma das facetas que se parece ter ignorado é o crescimento da população carcerária feminina, que demanda cuidados e necessidades específicas. A mesma pesquisa realizada em conjunto pelo PNUD e pela SNJ, divulgada em junho de 2015, revelou que o número de pessoas presas do sexo feminino aumentou em 146% no período compreendido entre 2005 a 2012.
Apesar de, aparentemente, tratar-se de um espaço físico com as mesmas características de um estabelecimento penal masculino, de forma subjacente encontram-se diversos questionamentos que não são sequer levantados. Neste momento, as diferenças sociais são as que têm maior relevância e peso. Uma das maiores diferenças, que não há como ser ignorada, é a capacidade de gestar. A mulher tanto pode engravidar dentro da prisão, caso haja visita íntima, assim como pode ter sido presa já em estado gravídico. Em qualquer dos dois casos, deverá passar por cuidados especiais que nenhum homem jamais haveria de passar. Não só durante a gestação, mas, sobretudo, após o parto, quando uma nova vida passa a existir. De quem passa a ser a responsabilidade daquele novo ser? Do Estado? Da mãe? A mãe tem direito de cuidar do filho? O Estado tem o dever de prover para a criança? São apenas alguns dos questionamentos que devem ser devidamente endereçados.
2. JUSTIFICATIVA DA RELEVÂNCIA DO TEMA
A mulher exerce um papel fundamental na sociedade, seja como mãe, como trabalhadora, como esposa. Até mesmo no estabelecimento penal masculino, ela tem sua presença marcante, mostrando suporte e apoio incondicional ao filho, ao pai, ou ao marido. E, muitas vezes, essa vontade de ajudar sem medir as consequências é exatamente o responsável por colocá-la atrás das grades também.
Cada vez mais, até mesmo devido à atenção dada pela mídia, alguns temas chegam à tona, seja em discussões mais cultas, políticas ou populares. Recentemente, devido ao sucesso do seriado americano Orange is the new black, cuja temática é a vida dentro de uma penitenciária federal de segurança mínima feminina, muitos artigos começaram a ser escritos nos Estados Unidos, sobretudo criticando a forma como se tem deturpado a imagem dos presídios femininos, distanciando-os do que acontece na realidade do seu dia-a-dia.
A título de exemplificação, o seriado exagera um pouco na dramatização de seus personagens, trazendo criatividade além da conta na descrição dos crimes cometidos pelas detentas, incluindo tráfico de crianças e crimes violentos. Na realidade, se forem observadas as estatísticas, pode-se observar que a grande maioria da população carcerária feminina é composta por mulheres que cometeram crimes de menor potencial ofensivo, geralmente relacionados a patrimônio e/ou drogas.
Outro aspecto que não é bem retratado é a quantidade de detentas que possuem filhos menores de idade. Quatro em cada cinco mulheres em penitenciárias federais femininas nos Estados Unidos são mães e, por serem apenas sete estabelecimentos penais desta natureza, muitas vezes, encontram-se a uma distância considerável de suas casas, o que impossibilita visitas constantes por parte de suas famílias.
De certa forma, o interesse trazido por programas de televisão e consequentes artigos de jornais e revistas, que acabam por levantar questionamentos, digerir informações, gerar controvérsias, acabam por fomentar discussões saudáveis em relação ao tema, forçando com que se pense no assunto que, por muitas vezes, é simplesmente renegado. Afinal, deve-se reconhecer que a população carcerária feminina tem crescido exponencialmente nos últimos anos, demandando uma atenção mais cautelosa.
Durante o governo Lula, em meados de 2007, com a criação do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, o PRONASCI, uma das ações nas quais mais se enfatizava era a estruturação dos estabelecimentos penais. Em uma de suas ações estruturais, foi montado um grupo especial de trabalho para se estudar as características específicas de uma penitenciária feminina. No entanto, tal empreitada jamais foi concluída. A importância e a relevância do tema já haviam sido então ventiladas, sobretudo devido a própria criação da iniciativa “Mulheres da Paz” na ocasião, que tinha como objetivo a capacitação de mulheres atuantes na comunidade para se constituírem, institucionalmente, como mediadoras sociais, de modo a prevenir a violência doméstica e outras formas de violências que compõem a realidade que envolve jovens e mulheres.
Verifique-se, portanto, que a própria criação do programa levou em consideração algumas características sociais específicas da mulher, que fizeram com que fosse necessária a elaboração de medidas especiais para a proteção de sua realidade e para a prevenção da violência. Assim, também no sistema prisional, alguns fatos devem ser levantados de forma adequada e, a partir disso, endereçados de maneira apropriada para que possam ter os efeitos esperados, arquitetonicamente falando. Nos Estados Unidos, a criminologia é a área do conhecimento responsável por agrupar informações relevantes para o combate ao crime e à reincidência, à execução penal, sendo que as estatísticas são efetivamente realizadas e compiladas em bancos de dados acessíveis e bem estruturados. No Brasil, falta um órgão ou um campo científico ou acadêmico estruturado que cuide dessa compilação de dados que seja capaz de dar o direcionamento para que esse primeiro passo possa ser dado.
Considerando-se, portanto, que o universo carcerário feminino ainda é bastante reduzido em comparação com o masculino, é possível fazer uma espécie de projeto piloto para que se possa replicar o modelo bem sucedido num momento futuro. Sendo assim, em um primeiro passo, pretende-se organizar dados relevantes da área da criminologia para que possam servir de diretrizes arquitetônicas para um modelo eficaz de estabelecimento penal concreto construído.
3. OBJETIVOS
Apesar de haver a pretensão de trazer resultados palpáveis ao final do prazo estipulado neste projeto de pesquisa, o objetivo principal que se pretende alcançar é a criação de uma nova metodologia de trabalho, na qual se desenvolva projetos arquitetônicos de estabelecimentos penais, com base em variáveis sociais criminológicas, cujas implicações são objetos de experimentos de psicologia social e ambiental.
3.1 Objetivo geral
O objetivo geral do presente trabalho é criar uma nova metodologia prática de desenvolvimento de pesquisa e projeto arquitetônico de estabelecimentos penais, que leve em consideração não só variáveis de praxe, como topografia, carta solar, materiais de construção, mas também elementos relevantes na área criminológica, como dados estatísticos de criminalidade local, nível de periculosidade dos detentos, uso de substâncias tóxicas, grau de reincidência, entre outros.
3.2 Objetivos específicos
• Realizar levantamentos estatísticos – em amostragens representativas de todo o território nacional e por regiões – capazes de traçar diretrizes para projetos arquitetônicos de estabelecimentos penais femininos, no que tange a informações como crimes cometidos, uso de narcóticos/álcool/fumo, estado civil, número de filhos menores, etc.;
• Gerar uma biblioteca prática de modelos arquitetônicos a serem utilizados em estabelecimentos penais femininos (em micro escala – mobiliário de cela, refeitório, oficina, etc. – e também em macro escala – módulos completos e até mesmo complexos penitenciários inteiros).
4. METODOLOGIA
A metodologia utilizada para o desenvolvimento do trabalho proposto será mista, composta por pesquisa de campo, com coleta de informações in loco, entrevistas pessoais, bem como documental, por meio de análise de projetos arquitetônicos e levantamento de dados estatísticos.
O estudo com o sistema penal-penitenciário teve início ainda em nível de graduação, nos cursos de Arquitetura e Urbanismo (2005) e de Direito (2006), tendo tido continuidade no Mestrado (2008) e no Doutorado (2014). Foram realizadas visitas técnicas a estabelecimentos penais em locais mais distintos no país, tanto em caráter técnico, como membro de comissão avaliadora do Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN, órgão vinculado ao Ministério da Justiça, como também e, em caráter profissional, como advogada e defensora pública, bem como acadêmico, como pesquisadora. Além disso, como parte de pesquisa em doutorado sanduíche, realizado com bolsa pela CAPES, nos Estados Unidos, foram realizadas experiências em estabelecimentos prisionais americanos, possibilitando comparar os sistemas dos dois países.
Pretende-se, portanto, aproveitar os estudos já realizados, aprimorando-os com a experiência adquirida ao longo das pesquisas, e, com a bibliografia já existente e compilada nos Estados Unidos, por exemplo, no campo da criminologia, realizar nova interpretação e análise de acordo com a realidade existente no Brasil. Com a amostragem do universo feminino, sendo mais reduzido, será possível realizar algo mais representativo, passível de descrição metodológica para que possa ser replicado futuramente.
5. RESULTADOS ESPERADOS
Uma descrição do método utilizado para desenvolver o produto finalizado, composto de:
- 1ª etapa: visitas em estabelecimentos penais, com finalidade de realização de levantamento de dados, entrevistas pessoais, pesquisa de campo;
- 2ª etapa: compilação de dados, estatísticas, diretrizes arquitetônicas;
- 3ª etapa: aplicação das diretrizes em laboratório de modelos arquitetônicos.
Durante todo o período, serão elaborados produtos acadêmicos (artigos científicos, papers, workshops, seminários), de modo a se documentar a evolução dos resultados obtidos.
6. CRONOGRAMA
Para a consecução dos objetivos descritos no presente projeto de pesquisa, a previsão é que seja necessário um prazo de quatro anos, conforme tabela sintética demonstrada a seguir:
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