O preço da política da “qualidade de vida”: milhares de jovens negros coagidos a se responsabilizarem por crimes que não cometeram

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Antes de dar início a este post, devo comentar que o tema faz relação ao sistema jurídico americano e segue, de um modo geral, os princípios do common law (diferentemente do que é utilizado no Brasil, que é o civil law). Apesar disso, muito da mentalidade aqui descrita vai fazer com que viremos nossas atenções para certas atitudes que são tomadas de um modo geral em nosso país, os quais descreverei a seguir.

Em 11 de novembro, o Washington Post publicou um artigo por Alexandra Natapoff, intitulado “The cost of ‘quality of life policing’: Thousands of young black men coerced to plead guilty to crimes they didn’t commit”. Como professora de direito da Loyola Law School, em Los Angeles, na Califórnia, ela escreveu sobre crimes de menor potencial ofensivo (“Misdemeanors”), texto que foi publicado em 2012 na Southern California Law Review.

A autora afirma que essas condenações realizadas de forma equivocada, considerados erros judiciais, são resultados de políticas voltadas para a “manutenção da ordem” e da “qualidade de vida”, em que a polícia realiza prisões arbitrárias de inúmeras pessoas negras, baseadas em fatos que sequer deveriam ser considerados crimes. A polícia de Baltimore, por exemplo, está sob monitoramento da justiça, em decorrência dessas ações que decorreram em prisões pró-qualidade-de-vida. Conforme descrição de um ex-policial, jovens eram obrigados a desviarem de seus caminhos e acabavam presos por vadiagem, sem o menor fundamento. Os tribunais de Maryland já se pronunciaram de maneira a tornar explícita a ilegalidade dessa prática policial: pessoas que estão meramente paradas ou andando pelas ruas, mesmo quando ordenadas a saírem de onde estão por policiais, não estariam praticando vadiagem, que seria definida pelo ordenamento jurídico local como “interferir, impedir ou atrapalhar o livre acesso de pedestres ou tráfego de veículos”, após ter sido alertado para deixar de fazê-lo.

Mas a polícia de várias outras cidades continuam a utilizar as prisões baseadas em vadiagem para todo tipo de propósitos – para manter as esquinas livres de baderna, mandar o recado para gangues e traficantes, ou mesmo para reafirmar a própria autoridade. No entanto, para aquele que encara a imputação em um processo criminal sofre uma enorme pressão para se declarar culpado, especialmente se estiver preso e não tiver condições de pagar fiança. Como resultado, muitos acabam sendo condenados por crimes que nunca cometeram, como vadiagem, invasão de propriedade privada, má conduta ou resistência à prisão. E isso, evidentemente, pode acontecer com qualquer um, porém, considerando o policiamento radical para que esse tipo de crime de menor potencial ofensivo seja evitado, combinado com as circunstâncias históricas do país, os negros, especialmente em bairros menos privilegiados (para não dizer “mais pobres”), a probabilidade que isso aconteça justamente com eles é muito maior.

Da mesma forma, em Nova Iorque, por 20 anos se viveu uma política em que se prendia pessoas que permanecessem nos projetos de habitação pública, ainda que tivessem o direito de estarem por lá. A maioria dos acusados se declararam culpados das imputações, como forma mais fácil de escapar da prisão, uma vez que, desta forma, tinham possibilidade de realizar acordo com a promotoria. A política foi tão excessiva que, em 2012, a Promotoria do Distrito de Bronx anunciou que não mais denunciaria acusados por invasão de privacidade com base apenas em relatórios policiais e, em 2013, a polícia foi declarada inconstitucional. Apesar disso, milhares de indivíduos já haviam sido condenados, muitos deles de maneira equivocada.

Ainda este ano, em 2015, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos concluiu que a polícia de Ferguson, em Missouri, prendeu ilegalmente uma quantidade enorme de residentes, sob a justificativa vaga de “desobediência”. Conforme explicado:

          Policiais frequentemente prendem indivíduos sob a Seção 29-16(1), baseado em fatos que não preenchem os requisitos provisionais. A Seção 29-16(1) torna ilegal a “desobediência ou inobservância de regras para a manutenção da ordem ou pedido de autoridade policial de acordo com o seu dever legal, sendo que desta inobservância tenha resultado interferência, obstrução ou entravamento do desempenho de suas atividades”. Muitos dos casos iniciados sob tal provisão começaram  a partir da ordem policial para parar, apesar de não haver nenhum indício de que aquele determinado indivíduo estivesse engajado em qualquer atividade criminosa. A ordem para parar não é uma “ordem legítima”, sob essas circunstâncias, uma vez que não há suspeita razoável de atividade criminosa. Apesar disso, quando os indivíduos não param nessas situações, muitos policiais acabam tratando a conduta como desobediência, e acaba realizando a prisão.        

Uma vez presos, residentes inocentes podem permanecer dentro de um estabelecimento penal provisório nojento e degradante, além de perigoso, por um tempo agonizante até que o processo se encerre. Sem contar com a possibilidade de confrontarem valores exorbitantes estipulados para fiança. A maioria das pessoas acabam se declarando culpadas.

Esse tipo de condenação representa a convergência das duas maiores falhas do sistema criminal: o viés racial e a pressa para condenar. O sistema criminal americano é criticado abundantemente por penalizar e focar de maneira mais dura os negros. Mas tais críticas geralmente se voltam para aqueles que são, de fato, culpados, além do racismo enraizado no sistema. Porém, a inocência de muitos é o que tem chacoalhado o sistema criminal a partir do movimento “Black Lives Matter”, em que se tem revelado uma série de erros judiciais em casos sérios, incluindo alguns cuja acusação foi de crimes como estupro ou assassinato.

Mas por que essas condenações permanecem invisíveis aos olhos da sociedade? Uma das razões mais óbvias é a crença de que uma condenação por crime de menor potencial ofensivo não tem peso relevante em uma ficha criminal. No entanto, tais situações representam consequências severas, podendo gerar reflexos na habilidade do indivíduo em possuir carteira de motorista, ser beneficiado com habitação popular em programas do governo, financiamento estudantil, ou mesmo em sua situação imigratória. Esses registros podem interferir em empregos futuros, considerando que a maioria dos empregadores admitem checarem antecedentes criminais de seus candidatos antes de contratá-los. É verdade que a punição mais comum para um crime de menor potencial ofensivo é uma multa ou punição por serviço comunitário, não necessariamente a prisão. Mas muitos acabam presos por não terem condições de pagarem tais multas. Em suma, o processo criminal por um crime não cometido é um fardo para milhares de negros que não só carregam o estigma e a indignidade de uma condenação equivocada, mas também acabam por ter de encarar consequências adjacentes.

O problema estrutural recai sobre o sistema do crime de menor potencial ofensivo, considerando o seu mecanismo desproporcionado em que se prejudica sobremaneira as pessoas de cor. Se fizermos um esforço para expor essas condenações equivocadas, podemos também alcançar algo ainda maior e mais fundamental: desfazer o elo mitológico entre a criminalidade e a negritude. Este mito degradante, que data da época da escravidão e até os dias de hoje afeta a cultura americana e o seu jeito de governar, não será eliminado da noite para o dia. No entanto, é necessário dar o primeiro passo, de modo que se reconheça que muitos desses jovens negros que são condenados por crimes de menor potencial ofensivo e, posteriormente, tratados como criminosos pelo resto de suas vidas, são, na realidade, inocentes.

Não entrarei muito no mérito neste post ainda sobre a situação no Brasil, mas há de se reconhecer que, não tanto de forma racial especificamente, mas certamente considerando-se as classes sociais, algumas injustiças são feitas diariamente e perpetuadas pelo nosso sistema criminal da mesma forma. Caso a se pensar e debater.

 

 

 

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